A artesã mora atualmente no Recife e atuou como biomédica em São Paulo anos atrás. Ela afirma que não exerce mais a profissão. O exame assinado no laboratório PCS Saleme usa o registro dela.
A artesã que teve o registro profissional usado pelo Laboratório PCS Lab Saleme conta que levou um susto ao saber que teve o número associado ao caso que está repercutindo pelo país. Um dos exames errados de doadores de órgãos infectados com HIV foi assinado por Jacqueline Iris Bacellar de Assis, mas usava o número do Conselho Regional de Biomedicina de Júlia Moraes de Oliveira Lima.
O registro de Júlia foi cancelado pelo Conselho no ano passado. Segundo ela, foi pela falta de pagamento da anuidade.
"Foi horrível porque eu descobri hoje [sábado] sobre esse caso e fiquei muito impactada com a história, que coisa horrível acontecendo com essas pessoas. De tarde, a repórter entrou em contato comigo dizendo que eu estava vinculada a essa história, mas eu não atuo como biomédica há muitos anos", conta ela.
O laudo da doadora de 40 anos, que morreu no Hospital Albert Schweitzer, em Realengo, Zona Oeste do Rio, foi analisado e liberado por Jacqueline. O exame dizia que a mulher não tinha HIV, mas os órgãos doados por ela infectaram pacientes que foram transplantados.
O laboratório PCS foi apontado pela Secretaria Estadual de Saúde como responsável pelo erro em dois exames, o que culminou na infecção por HIV de seis pessoas que estavam na fila do transplante e receberam órgãos. O caso foi noticiado inicialmente pela Band News.
O incidente é apurado por Ministério da Saúde, Ministério Público do RJ (MPRJ), Polícia Civil e Conselho Regional de Medicina (Cremerj), além da Polícia Federal.
Até então, dois doadores infectaram os seis pacientes. Os exames feitos pelo PCS Saleme não detectaram a doença antes do transplante. Da paciente que teve o sangue analisado por Jacqueline, foram doados os rins e o fígado.
Ao procurar pelo nome de Jacqueline Iris Bacellar de Assis, não foi encontrado nenhum registro de biomédica.
Júlia lembra que, após o susto, ela se entristeceu com a situação.
Atualmente, Júlia trabalha com a produção e venda de velas artesanais e não exerce a biomedicina. Ela conta que trabalhou profissionalmente em dois laboratórios particulares de São Paulo, antes de se mudar para Recife, onde mora.
O exame do outro doador que contaminou pacientes transplantados foi assinado pelo médico ginecologista Walter Vieira, que era responsável técnico do laboratório. Walter é marido da tia do ex-secretário estadual de Saúde e atual deputado federal, Doutor Luizinho.
Laboratório recebeu mais de R$ 20 milhões do governo
O Laboratório PCS Saleme atendia ainda outras 10 unidades de saúde estadual.
Segundo o contrato ao qual a TV Globo teve acesso, o laboratório prestava serviços de análises clínicas e patológicas, com exames de sangue e de identificação de doenças como toxoplasmose, hepatite, sífilis e até câncer.
De 2022 até setembro de 2024, o valor empenhado pela Secretaria de Saúde em contratos com a PCS Lab era de R$ 21,5 milhões.
Segundo os documentos do pregão eletrônico, a média mensal de exames laboratoriais realizados por todas as unidades da rede é de mais de 69 mil análises. Somando as análises patológicas, que incluem biópsias em caso de câncer e outras doenças, o número pode chegar a 73 mil.
Sede do PCS Lab Saleme, em Nova Iguaçu — Foto: Rafael Nascimento/g1
Já os exames de anatomia patológica, que incluem análises de biópsias para identificação de câncer por exemplo, foram estimados em pouco mais de 4 mil por mês.
Eram atendidos pela PCS Saleme os hospitais estaduais Anchieta; Carlos Chagas; Eduardo Rabelo; Santa Maria, o Instituto Estadual de Cardiologia, o Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária, o Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia, o Instituto Estadual de Doenças do Tórax, o Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro, além do Hemorio e da Central de Transplantes.
Apenas no mês de junho, no Hospital Estadual Eduardo Rabelo, o laboratório PCS Saleme alega ter feito mais de 43 mil análises, entre exames de sangue e testes patológicos. Somente nesta unidade, em junho, foram 147 testes de Hepatite e 143 de HIV, entre outras doenças analisadas.
Confira a lista completa das unidades atendidas pelo laboratório:
- Hospital Estadual Anchieta (HEAN)
- Hospital Estadual Carlos Chagas (HECC)
- Hospital Estadual Eduardo Rabelo (HEER)
- Hospital Estadual Santa Maria (HESM)
- Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro (IECAC)
- Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária (IEDS)
- Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capliglione (IEDE)
- Instituto Estadual de Doenças do Tórax Ary Parreiras (IETAP)
- Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti (HEMORIO)
- Central Estadual de Transplante (CET)
- Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro (CPRJ)
A situação foi descoberta no último dia 10 de setembro, quando um paciente transplantado foi ao hospital com sintomas neurológicos e teve o resultado para HIV positivo; ele não tinha o vírus antes.
Esse paciente recebeu um coração no fim de janeiro. A partir daí, as autoridades refizeram todo o processo e chegaram a 2 exames feitos pelo PCS Lab Saleme.
A primeira coleta foi feita no dia 23 de janeiro deste ano — foram doados os rins, o fígado, o coração e a córnea, e todos, segundo o laboratório, deram não reagentes para HIV.
Sempre que um órgão é doado, uma amostra é guardada. A SES-RJ, então, fez uma contraprova do material e identificou o HIV. Em paralelo, a pasta rastreou os demais receptores e confirmou que as pessoas que receberam 1 rim cada também deram positivo para o HIV. A que recebeu a córnea, que não é tão vascularizada, deu negativo. A que recebeu o fígado morreu pouco depois do transplante, mas o quadro dela já era grave, e a morte não teria relação com o HIV.
No dia 3 de outubro, mais um transplantado também apresentou sintomas neurológicos e testou positivo para HIV. Essa pessoa também não tinha o vírus antes da cirurgia. Cruzando os dados, chegaram a outro exame errado, o de uma doadora no dia 25 de maio deste ano.
O que dizem os envolvidos
Nota da Secretaria de Saúde:
“A Secretaria de Estado de Saúde informa que abriu uma sindicância para apuração rigorosa do processo de doação de órgãos dos dois doadores infectados pelo vírus HIV. As etapas da sindicância seguem em sigilo.
Cabe ressaltar que uma comissão multidisciplinar foi criada para acolher os pacientes afetados e, imediatamente, foram tomadas medidas para garantir a segurança dos transplantados.
O laboratório privado, contratado por licitação pela Fundação Saúde para atender o programa de transplantes, teve o serviço suspenso logo após a ciência do caso e foi interditado cautelarmente. Com isso, os exames passaram a ser realizados pelo Hemorio.
A Secretaria está realizando um rastreio com a reavaliação de todas as amostras de sangue armazenadas dos doadores, a partir de dezembro de 2023, data da contratação do laboratório”.
Nota do PCS Lab:
"O laboratório PCS Lab Saleme informa que, desde o início da prestação de serviço à Fundação Saúde do Governo do Estado do Rio de Janeiro, comprou cerca de 900 testes de diagnóstico de HIV recomendados pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa.
Em relação a Walter Vieira, o PCS Lab Saleme esclarece que ele é médico e farmacêutico formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele esteve registrado no Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro como responsável técnico do laboratório até 26 de julho de 2024, quando foi substituído por Eliane Nunes Bandoli, também médica.
O laboratório reforça que abriu sindicância interna para apurar as responsabilidades; está à disposição das autoridades que investigam o caso; e dará suporte médico e psicológico aos pacientes infectados com HIV e seus familiares.
Em relação ao registro profissional de Jacqueline Iris Bacellar de Assis, este é um dos pontos que está sendo investigado pela sindicância aberta pelo laboratório."